Páginas e páginas da história estão abarrotadas de cadáveres. Milhões morreram devido a estupidez de reis, ditadores, sacerdotes e mercadores. Guerras foram justificadas por questões econômicas. Massacres aconteceram para defender patriotismos imbecis. Genocídios se repetiram para que determinada religião prevalecesse. Gerações se comportaram com menos dignidade que os lobos que não são predadores da própria matilha.
Em Crime e Castigo, Dostoiévski narra a vida de Raskólnikov, estudante desesperado pela miséria. Vendo-se explorado por Aliena Ivánovna, uma velha, usurária que sobrevive da agiotagem, Raskólnikov a assassina com golpes de machado. Para justificar seu homicídio, Raskólnikov, que era brilhante, engendra uma teoria: existem dois tipos de indivíduos, os ordinários e os extraordinários. Os ordinários são aqueles que se contentam em reproduzir, e caminham anônimos pela existência; eles fazem parte das massas, e vagam como manada. Já os extraordinários são os responsáveis pela história e sobre seus ombros recai o dever de conduzir os destinos da humanidade.
Raskólnikov se inspirou em Napoleão antes de decidir matar. Ele se lembrou que o imperador verteu rios de sangue para solidificar a burguesia francesa que necessitava de uma estrutura bancária. Seu pensamento foi mais ou menos o seguinte: Ora, se a história absolveu Napoleão, que matou milhões em nome de um projeto econômico, porque eu, Rodion Románovitch Raskólnikov, não posso acabar com uma decrépita, que repete na microestrutura o que o sistema bancário faz na macroestrutura?.
Neste pressuposto, Dostoiévski critica o projeto da modernidade. A modernidade, que transformou o século XX no mais sanguinário da história, se desenvolveu com a lógica sacrificial de que indivíduos podem ser descartados. Quem vai julgar a indústria do leite em pó, que promoveu um infanticídio na África ao incentivar o abandono do aleitamento materno? As grifes famosas, que exploram o trabalho escravo na Ásia para maximizar lucros, permanecerão impunes? Quem há de protestar contra o absurdo de uma xícara de café custar, na Europa, mais que um dia de trabalho em fazendas da América do Sul? George W. Bush vai mesmo desfrutar uma vida abastada e longa no Texas, sem sofrer nenhum processo em tribunais internacionais?
Os extraordinários se sentem imunes e impunes. Em nome do processo civilizatório, do capitalismo que mantém a engrenagem econômica em movimento e do progresso, vidas são eliminadas, inclusive, com efeitos colaterais perversos. Danem-se os pobres, as crianças e os deficientes. Algum preço tem que ser pago para que a humanidade progrida e alcance seu fim glorioso, afirmam.
Em cima de tal lógica, Raskólnikov jamais admitiu ter matado a velha. Para ele, um "princípio" foi eliminado. Aliena era um obstáculo, um piolho, que estorvava o seu caminho.
Profeta adiante de sua época, Dostoiévski expôs a inclemência do capitalismo, que não tem escrúpulos de mercadejar com a alma humana. As grandes fortunas, os mega empreendimentos, as ideologias absolutas, junto com as religiões dogmáticas, não têm coração; não sentem remorso. Mas Raskólnikov sofreu. Sua consciência não o deixava em paz, teve febre e foi para o fundo do poço. A mensagem final do livro é: existe a possibilidade de um novo começo para indivíduos maus; as estruturas sociais, religiosas e econômicas, entretanto, se depravaram e nunca vão parar de assassinar.
Ricardo gondim: www.ricardogondim.com.br
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