Sonhos outonais
Ricardo Gondim
Durante muitos anos, Raimundo sonhou com viagens de avião. Ele entrava em algum vôo que nunca transcorria tranquilo. Logo que desgrudava do chão, como em um thriller de ficção científica, o piloto precisava manobrar para não espatifar a aeronave. Fios, galhos, espaços estreitos entre edifícios ameaçavam o percurso. De repente, algum problema mais grave forçava um pouso de emergência. Na maioria das vezes Raimundo se via em prados, países ermos ou selvas. Participava de piqueniques, caminhadas, passeios com outros passageiros, como também enfrentava bandidos, animais famintos e labirintos complicados. Porém, nunca chegava ao destino. Frustrado, Raimundo acordava sem entender o porquê de o seu inconsciente precisar encenar tal peça. Fez terapia para decifrar esses devaneios recorrentes, só para aumentar a inquietação.
Semana passada, conversamos sentados diante de um por do sol outonal. Raimundo ainda não conseguiu desvendar os meandros da opereta que o ID encena há tantos anos. Lembro de seus olhos frustrados, comunicando-me uma sensação ruim. Viagem interrompida nunca é agradável. Igual aos sonhos, contou que, na vida, viu-se empacado no meio do caminho em muitos projetos.
–Já abortei muitos planos, já sofri muitas decepções. Espremendo uma lágrima, fitou-me de soslaio e continuou. – Engravidei com meus devaneios só para abortar planos como se fossem fetos. O Ministério da Saúde suspeita de irregularidades em minhas gestações. Não passo de clínica clandestina.
Eu lhe disse que esse tipo de sonho pode transformar-se em pesadelo. Raimundo já ultrapassou a idade fértil de procriar. Seu útero existencial envelheceu. Encanecido, não suportará perder outras crias. Os Quixotes que viviam em seu ideal juvenil pediram aposentadoria. Ele tem que se reinventar.
Os desencantados não cobiçam glória. Os desiludidos, depois de conviverem com cortes abruptos, definem-se pela descontinuidade. Os casmurros não aceitam que devam acostumar-se com as decepções. Os ranhetas estranham a dor do abandono.
Aconselhei-lhe a não se inquietar com o sonho do avião que não chega a lugar nenhum.
Todos experimentam traições, algumas bobas outras sinistras. Mesmo bem interpretados por amigos, geramos dissabores; mal compreendidos, produzimos angústias. Nossas biografias estão recheadas de tiros saindo pela culatra, dardos sem rumo, cata-ventos malucos, pontes inacabadas. Falamos e ferimos. Encaramujados, fugimos da possibilidade da luta. Imaturos, arrancamos as cascas das feridas do coração.
Não há como fugir mesmo que precisemos continuar a dormir para que o sonho acabe feliz. A vida é feita de interrupções. Disse-lhe que se conforme. Aqueles sonhos são alegorias da vida. Para os poucos projetos que decolam, a maioria se desvia, mofa no fundo dos armários ou se perde em selvas. Qualquer dia, todos acordaremos, sabe-se lá onde, para a dura realidade de que o nosso dever era brincar no piquenique do pouso forçado. E não ansiar por chegar a algum destino.
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