segunda-feira, 26 de julho de 2010

Reflexão:

O olho mágico.
O drama humano angustia e, muitas vezes, nos abandona desesperançados. Existem mais tristezas do que a alma pode suportar. Sequer sei se conseguirei narrar este conto. Ele contem os ingredientes de um drama cruel. Aceitei a incumbência de relatar alguns detalhes desta tragédia, porque Carla me pediu e nutro um ingênuo e tolo desejo de evitar desfechos tão tristes. Como escritor, sofrerei mais do que você, parceiro de ficção.
Conheci Ivan quando experimentava minha doce infância. Nossos verdes anos, contudo, passaram rápido. Nem percebemos quando desafinamos a voz, passamos a suar debaixo dos braços e a ter polução noturna. De repente nos vimos adolescentes.
Prestei atenção ao Ivan ainda em nosso primeiro dia na escola. Ele desceu do ônibus trazido pela mão da mãe, mas aparentava perfeito domínio do mundo. Enquanto eu tremia na hora em que mamãe me empurrava pelas portas do enorme prédio que dava para o espantoso pátio, Ivan, de calças curtas azuis e camiseta amarela, palmilhava o novo habitat como um lobo. Lépido, corria como se freqüentasse aquele mundo há anos.
Ficamos amigos. Ele sempre falou manso, baixinho e em ritmo lento; seus gestos acompanhavam a melodia da voz. Mesmo assim, sua alma o denunciava; o frenesi nos olhos de Ivan não deixava esconder que era irrequieto.
Nas duas primeiras semanas de aula, Ivan já encarava a professora. Antes das primeiras férias, foi chamado à diretoria por encabeçar um vandalismo que destruiu três bebedores.
Ivan era nossa inspiração; comandava os grandes arruaceiros da escola e do bairro, mas sabia manter-se anônimo. Escapava de ser flagrado e outros, invariavelmente, pagavam por suas transgressões. Eu o invejava.
Ivan se sentia seguro mesmo na puberdade. Ao contrário de todos nós, não se perturbava com o tamanho do pênis ou com a escassez de pêlos no rosto. Eu queria ter músculos iguais ao dele, seu caminhar me maravilhava.
Nossa amizade se consolidou e formamos um time, na verdade uma gangue com Tobias, que ganhou o apelido de Tangerina; Marcelo, o Fiapo de Cobra; e Francisco, o Chicão. O pacto do nosso grupo era simples. Juramos nos defender, não estragar o namoro do colega e jamais delatar o outro.
Logo percebemos que precisávamos de dinheiro. O pouco que recebíamos de nossos pais não dava para sustentar a praia, o cinema, os refrigerantes na quermesse e os táxis - chegar de ônibus na casa da namorada ou na praia era impensável. Devido a nossa pobreza, Ivan nos iniciou em pequenos furtos. Visitávamos a loja da Lobrás no centro da cidade e Ivan nos liderava entre as prateleiras; numa rapidez impressionante nos abastecíamos com o que mastigar no cinema. Devemos ao Ivan, também, a falsificação da carteira de estudante que nos desvirginou para os filmes proibidos que mostravam mulheres semi-nuas.
Nossa rotina semanal passou a ser basicamente a mesma. Terminada a aula, almoçávamos e sem combinar a hora, nos encontrávamos no coreto da pracinha. Lá, aprendemos a fumar e matar o tempo. Como a gente mentia! Parecia um campeonato: quem conseguia superar o outro com lorotas sobre aventuras sexuais, riqueza de tios inexistentes e férias maravilhosas. Habitávamos o mundo fantástico das fantasias mirabolantes.
- Semana passada meu tio me levou para um cabaré, e vocês não vão acreditar, uma morena de olhos verdes e cabelos curtos me chamou para sentar no colo dela. Nem vou contar o que senti quando ela pediu para transar. Quando terminamos, falou que nunca tinha experimentado um amor tão maravilhoso.
Ivan terminava de contar sua história e Tangerina, magérrimo, quase assobiando devido aos dentes da frente cariados, iniciava a sua mentira:
- Pois é, minha prima veio passar o fim de semana em casa e ela se encantou comigo. Ontem, eu tomava um banho muito quente, o banheiro ficou todo esfumaçado e quando me virei, vi uma mulher em pé, dentro do banheiro. Vocês não vão acreditar. Era minha prima, nuazinha. A doida, cheia de tesão, implorou para me dar um beijo e tudo aconteceu ali, debaixo d’água. Criávamos as aventuras mais fantásticas no mundo. Cada qual queria ser mais sortudo no sexo, mais abonado com dinheiro e, lógico, mais macho.
Porém, nosso grupo, nossas vidas e nosso futuro mudaram numa tarde gelada de quinta feira.
Tangerina chegou exibindo seu trunfo: um envelope de maconha. Aquilo era o máximo da coragem.
- Vejam o que consegui! Só os mano mais bem relacionados conseguem essa erva.
Ficamos ansiosos. Enquanto Tangerina rasgava o envelope, a gente se espremia para olhar de perto. A maconha vinha picada como mato, não parecia ameaçadora. Eu tremia, mas de pura emoção, abismado com Tangerina preparando o primeiro cigarro. Assim que acendeu, o cheiro doce e suave da droga encheu o coreto. Ele demonstrava saber o que fazia. Seus gestos espontâneos eram meticulosos, sempre firmes e conscientes.
Tangerina, sorveu a fumaça como se não fosse mais soltar dos pulmões; sustentou uns quinze segundos com o peito estufado. Tive vontade de rir, Tangerina parecia um mergulhador que se prepara para ficar muito tempo debaixo d’água.
- E aí?, perguntamos todos.
- É muito legal, respondeu com a voz já pastosa, cheia de um sono repentino.
Ivan se candidatou primeiro.
- Eu quero, eu também quero.
Segurou o cigarro fazendo dos dedos uma pinça e sorveu a fumaça com uma vontade descomedida. Na primeira tragada não sentiu nada, só a tontura de segurar o fôlego.
- Ivan, não se preocupe, é que você ainda não está acostumado. Na próxima vai sentir o tranco. Tangerina consolou, orgulhoso de assumir temporariamente a liderança da gangue.
O cigarro passou de mão em mão até chegar a mim. Repeti os gestos dos outros; também não senti nada. Culpei a pressa do Ivan; ele impedia a maconha de cumprir sua função inebriante.
O baseado queimou rápido e Ivan comentou que a fumaça estava quente. Mesmo assim chupou o baseado e segurou a fumaça com firmeza.
– Agora sim. Sinto o meu corpo flutuar; é diferente de tudo o que já senti na vida.
Nenhum de nós experimentou a mesma coisa. Já era tarde e precisamos voltar para casa. Um pressentimento horroroso tomou conta de mim. Entrei em casa apressado, algo me dizia que seria surpreendido; corri para o banheiro e abri o chuveiro tentando lavar o cheiro doce que empestava minha pele. Mas esqueci as roupas no quarto. Bastou esse vacilo. Na minha primeira experiência com droga, mamãe descobriu tudo. Enquanto me enxugava eu a vi sentada na cama com a camisa estirada no colo - não pude negar nada.
Peguei cinco dias de castigo sem sair de casa e na outra semana me despacharam para a casa da madrinha. Três meses depois, papai pediu transferência e em menos de seis meses vivíamos longe da minha cidade natal. Hoje sei que foi aquela tarde que desencadeou tantas mudanças na família. Ivan nada sofreu.
O pai de Ivan, general André, era um militar rígido – o velho não tolerava que se falasse em voz alta. Como viajava quase toda semana para Brasília, o general André voltava neurótico por silêncio, exigindo das pessoas quietude semelhante à caserna; permitia conversas e risos pelos jardins da mansão, mas quem atravessava a soleira principal, tinha que sussurrar. Os que ousavam escutar música ou assistir televisão recebiam uma reprimenda digna de um soldado desertor.
Ivan e seus irmãos se habituaram a viver enfurnados nos quartos. Não conversavam porque ninguém aguentava mais os abusos verbais do velho.
Carla, a mãe de Ivan, lecionava na Universidade Federal; era doutora em fonética e apaixonada por poesia. Varava dias na Faculdade de Letras organizando serões literários, promovendo noites de autógrafos, participando de bancas de doutoramento; quase sempre chegava tarde com os olhos vermelhos de fadiga. Detestava o clima tenso que o marido impunha à família, por isso o chamava o general de “Coveiro”; e não tinha medo de explicar o apelido:
- Só coveiro gosta de silêncio sepulcral.
Daquela primeira tragada, Ivan evoluiu para a cocaína, depois fumou crack e preparou coquetéis alucinógenos. A princípio Carla notou que o filho perdera a vontade de se vestir na moda. Numa visita ao colégio, soube que Ivan estava reprovado a quatro meses do fim do ano. Por último, recebeu um telefonema às duas horas da madrugada para ir buscá-lo na delegacia do III DP - numa batida policial, Ivan mais dois foram apanhados com seringas e remédios roubados de uma farmácia. Foi preciso a intervenção do general para o filho não continuar preso e ser encaminhado para a Febem.
Na mesma semana Carla contratou uma psicóloga que ajudaria Ivan a se livrar da dependência química. A psicóloga detectou um problema de auto-estima, Ivan não se achava, não se aceitava e não tinha projetos. Assim, o General André, querendo mostrar cuidado, deu um carro de presente para o filho.
A mãe o matriculou Ivan em um curso de inglês com direito a um intercâmbio no exterior, logo que ele terminasse o módulo básico.
Visitei Carla doze anos depois de nossa mudança. Lembro-me do susto que levei quando entrei no hospital e a vi naquele estado. Não reconheci a mãe do meu amigo de infância. Ela estava com câncer. Seu corpo macerado, sua boca magérrima e suas mãos esqueléticas revelavam que morreria em breve.
Perguntei-lhe pelo Ivan. Fazia dez anos que Carla havia perdido qualquer contato com o filho. Ele sumira desde uma terrível noite que terminou por destruir o que sobrava da família. Só relato o que ouvi naquele leito de morte porque Carla me pediu.
Ivan fora a uma festa onde rolou tudo: cocaína, ecstasy, maconha e muito álcool. Drogado, voltou para o seu apartamento. Como se sentia só, Ivan decidiu contratar uma garota de programa para lhe fazer companhia.
No ínterim após o telefonema, antes que a mulher chegasse, Carla tomou o elevador para tentar resgatar o filho. Ivan se despiu para recepcionar a prostituta e no momento em que Carla tocou a campainha, Ivan ainda conferiu pelo olho mágico, mas não conseguiu discernir quem chegava.
Excitado sexualmente, Ivan abriu a porta procurando abraçar a mulher que mal conseguiu identificar. Ivan passou a acariciar a mãe como se fosse uma prostituta. Desesperada, Carla tirou um revólver da bolsa e ameaçou se matar se ele não parasse.
Subitamente sóbrio, Ivan se afastou da mãe, vestiu-se sem dizer nenhuma palavra e sumiu. Ontem recebi a notícia de que Carla morreu sem jamais ter visto o filho novamente.
por Ricardo Gondim: www.ricardogondim.com.br

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